O carnaval é uma festa pagã que existe desde o antigo Egito. Época pré-cristã, as sociedades sedentárias eram essencialmente agrárias. E para quem vivia do plantio em épocas pré-tencológicas, a ciência da colheita era feita a partir da observação das estações do ano. Porque o sucesso do plantio, está relacionado diretamente ao saber a hora certa de plantar e colher. E para as sociedades que se transmutaram de caçadores-coletores, nômades, que precisavam estar sempre em movimento atrás de alimento, para agricultores, sedentários, organizados em torno do rio e das cidades, o sucesso da colheita era simplesmente vital.
O espírito humano sempre esteve aberto aos mistérios do universo. A sabedoria não é nata, mas vamos amadurecendo à medida que crescemos e vivemos nossas experiências. O homem está em diálogo constante com o seu meio exterior, e isso é desejável até mesmo se você observar do ponto de vista das intenções da natureza: nossos sentidos foram feitos para dialogarmos com o meio exterior. O homem, no entanto, faz o diálogo em um nível além do material; ele dialoga também no nível da linguagem, da imaginação. Tudo que existe no exterior (que é apreensível pelos sentidos) é transformado em conceitos, blocos de entendimento condensados, a partir dos quais o pensamento é articulado. Esses conceitos não são a realidade em si, mas uma referência a algo de uma realidade inabarcável dentro do universo cognoscível da linguagem, onde podemos compreender indiretamente o que está se passando no exterior.
Esse é o processo das divindades do mundo pagão. São conceitos que foram construídos em nível de linguagem para referenciarem-se a realidades não completamente apreensíveis pelo homem, por uma limitação congnitiva essencial ou circunstancial.
Já que o sucesso da colheita significava a vida ou a morte de uma comunidade inteira, dá para imaginar o quanto o entendimento do processo de plantio deveria ocupar dentro do universo de preocupações de uma sociedade. Quantos desejos e aspirações se misturavam a medo e apreensões. E nesse diálogo do homem com a natureza, a natureza responde.
No tempo antigo tudo era muito mais misterioso e desconhecido. Como se trata de um diálogo entre o homem e a natureza, sendo a resposta da natureza de cunho vital, esse diálogo foi condensado em uma figura divina. A Natureza é a responsável pela vida e pela morte de uma sociedade, ela possui poderes de deus sobre toda a comunidade, o poder da vida e da destruição.
Nesse contexto, celebrar o fim do inverno, época do desfolhamento, da “morte” das plantas, e o início da primavera, época da fecundidade das plantas, quando tudo se colore e os ambientes se enchem de um novo perfume, paira uma alegria no ar, um motivo de contemplação por si, e que ainda precede a fartura de alimentos. Totalmente compreensível a alegria que se forma a partir dessa mudança de ciclos. É como uma dança em que a vida vence a morte, e isso é objeto claro de celebração.
Mais tarde na história, a vitória da vida sobre a morte é absorvida pela ressurreição de Cristo, que vence a crucificação e o mal trato da carne pela ascenção do espírito.
A cosmovisão pagã e a cristã possuem esse ponto em comum: a vitória da vida sobre a morte é uma aspiração, um ideal a ser buscado, mesmo que isso custe o sacrifício de um em nome de todos. Na cosmovisão pagã, o sacrifício de algum animal ou até mesmo humano em oferenda a alguma divindade em troca da vida coletiva é tranquilamente suportado; ao passo que na história cristã, Jesus oferece a sua própria carne em sacrifício, em troca da salvação do espírito de toda a comunidade. Talvez sejam dois pólos que pretendem o mesmo fim. Há de certo alguma unidade na dialética de opostos.
Mas enfim, o carnaval simboliza a alegria de um tempo promissor de fecundidade. E o cristianismo o absorveu dentro de si como uma progressão cuja edificação final seria que essa felicidade não eclipse a redenção de cristo pelo sofrimento da carne e sua entrega em nome de todos. Como quem diz, é um período de alegria , sim, que deve ser contemplado, mas o que realmente importa é a salvação do espírito sobre a matéria.
Após essa reflexão, focamos para esse sábado em uma música cuja harmonia e melodia evocam um espírito reflexivo, menos festivo, mas que combina com uma contemplação sóbria da natureza, do amor.
Clique aqui para ouvir